Por acidente...


Estava há horas naquela sala de hospital. Seus olhos já doíam de olhar aquela apática parede branca, e os ponteiros do relógio nunca andavam mais do que três segundos a cada vez que olhava.
Mas nada daquilo seria tão ruim se não fosse a preocupação que sentia. Lembrava quando o ouvira falar daquela viagem. Ele não lhe contara diretamente; mas ela ouvira atentamente cada palavra: dos amigos, das meninas, os burburinhos da turma. Sabia a data de saída, a de chegada, o lugar, as expectativas. Tivera um pressentimento ruim.
Como não tinha com ele tanta liberdade assim, não pediu que não fosse. 
Até porque, ele iria, de qualquer jeito. Mas pediu uma coisa: "Se cuida".
Nunca pediu algo tão seriamente quanto pediu aquilo.

*****

Foram. Rezava toda noite. Queria ligar, mas sabia que seria chato de sua parte… Esperou. Quatro dias. Naquela noite sentiu-se mal… Um aperto no peito. "Pedro" pensou imediatamente.
_Ana? _  ligou.
_Oi, tudo bem…
_O Pedro está bem?
_Ele… Bem, você não sabe o que aconteceu…
Acidente. Estavam apostando corrida. Ele estava na caminhonete, de pé. Bateram. Ele voou longe, e rolou morro abaixo, batendo nas árvores. Se feriu muito. Perdeu muito sangue. "Ele está morrendo" - Ela soube.
Depois daquilo, estava ali. Os pais dele também. A mãe ficou com ela, o pai foi trabalhar; Já havia amanhecido. Ela tinha um livro, iogurte, umas castanhas, água. Dividiram, as duas. Ela saiu e comprou um salgado, trouxe café. Nenhuma delas havia dormido.
Um homem de jaleco branco vinha andando pelo corredor. Pediu informações no balcão, onde a moça apontou as duas. Ele caminhou até elas vagarosamente, e questionou:
_A senhora é a mãe do Pedro?
Ele estava estável, dopado pelos remédios desde o dia anterior.  Levara vários pontos na cabeça e alguns no braço e tórax. Por sorte, mantiveram-no consciente até chegar ao hospital, caso contrário os danos cerebrais poderiam ter sido maiores. Esperavam que acordasse logo, e que alcançasse pelo menos uma conheciência superficial até o fim do dia.
Respirando aliviada, ela sorriu. Tinha temido o pior durante toda noite, e merecia um descanso. Queria vê-lo, claro; Mas a família deveria vir primeiro.
Mais tarde voltaria. Foi para casa, comeu, e se deu ao luxo de dormir por algumas horas. Foi à escola, pegou tarefas, fez, estudou. Não queria deixar que percebessem alguma alteração em si. À noite, era hora de voltar.
Chegando à sala de espera, informou-se sobre os pais dele. "Já foram?" Já. Pediram que a avisassem, e que ela pudesse visitá-lo. Será que sabiam? Bem, não importava.
Temerosa, ela abriu a porta do quarto. "Pedro?" Dormindo… Como um anjo.
Ela sorriu. Que saudade… Começou a falar com ele; no começo sussurrando, depois normalmente, no fim um pouco baixo, lutando contra algumas lágrimas que insistiam em descer por seu rosto.
"Pedro… Eu tive tanto medo. Eu não queria que você fosse nisso, acho que já sabia. Quando a Ana me disse… Sabia que eu fiquei aqui a noite inteira?"
Ela ria baixinho, e finalmente tomou coragem de segurar a mão dele.
"Nunca mais faça algo assim, ok? Eu… Eu não suportaria perder você."
A rua estava escura, e os postes jogavam fachos tímidos de luz na calçada desgastada. Quase ninguém andava a pé, àquela hora. Pela janela do hospital, ela olhava e se preparava para passar mais uma noite ali; desta vez, a última.
Amanhã cedo iria dali para a escola, era perto. Disse aos pais que dormiria fora, com uma amiga; omitira algumas informações, mas nada sério. De fato, era por uma boa causa:  Era a última oportunidade que teria de amá-lo livremente.
Depois daquilo, voltariam à vida comum de "oi, tchau", algumas palavras. Aquela vida em que ela vivia constantemente fingindo que ele era apenas mais um menino… Porque para ela, não era.

*****

Amanheceu. Ela acordou silenciosamente, desamassou  um pouco as roupas, escondeu com maquiagem as olheiras de noites preocupadas.
Olhou para ele e sorriu. Era sempre essa, a reação que a visão dele lhe causava. Pelo menos agora ele estava bem… O efeito dos remédios já estava passando, ela calculou. Era melhor que fosse logo. Pela janela, pessoas andando, indo para o trabalho… Sim, hora de ir.
Aproximou-se dele, passou a mão pelos cabelos castanhos, e se atreveu apenas a uma coisa mais: Um beijo.
Suave e rápido. Provavelmente o único… Depois disso, saiu apressada. Só teve tempo de desejar, antes de fechar a porta: "Fique bem."

*****

Uma semana se passou. Ela voltou a aula, à vida normal, à rotina. Arrumou-se, tinha aula à tarde naquele dia. Foi andando pela rua distraída, pensando em tudo. Chegando à porta, parou para pegar algo na bolsa, "será que terminei a tarefa de hoje?"
Alguém tocou se braço.
_Ei, pra quê tanta pressa?
_Pedro?
_Eu mesmo. Já faz uns dias que saí do hospital, e como me contaram que você foi lá…
_Bem, é, sabe, eu soube que você estava, é, e aí eu fui, bem… Eu acabei passando umas duas horas lá com a sua mãe.
_Duas horas? Duas noites.
Vendo o silêncio dela, ele, divertido, continua.
_Duas noites, e na segunda ficou comigo lá para os meus pais poderem descansar. Acontece que, quando você entrou no quarto, eu não estava dormindo.    Fiquei de olhos fechados porque estava me sentindo cansado e um pouco tonto, acho que era por causa dos remédios.
_ Então você…
_Ouvi. Sim, tudo o que você disse.
_Meu Deus…_ Ela escondei o rosto com as mãos, vermelha de vergonha.
Ele segurou as mãos dela e lentamente as entrelaçou com as dele. Surpresa, ela levantou os olhos. Ele estava sorrindo.
_Eu lembro do que você disse, e também do que você fez…
Ela suspendeu a respiração.
_Mas agora, eu só vou ficar bem se você estiver comigo.
E então ele a beijou.
"E tudo isso aconteceu por um acidente…" foi só o que ela teve tempo de pensar, antes de se deixar inundar pela felicidade.

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