Cores e texturas

A UWC abriu a minha vida para uma tonelada de cores e estampas que antes não eram. Encheu meu feed de notícias com recados dos quatro cantos do mundo, com lutas de grupos que eu não sabia da existência, com fotos do mundo inteiro e cantares que não são os meus. Encheu de ritmos de outras terras, de olhos escuros profundos e olhos azuis translúcidos, de verde das árvores tropicais e de marrom e branco das montanhas. Encheu minhas mãos de texturas, esfregou meus pés com a terra áspera dos vales no outono, com a fragilidade quebradiça de folhas amarelas que as árvores, em sua não-necessidade, devolvem ao solo para enfeite das ruas da cidade. A UWC me deu um pôr-do-sol cor de rosa e as nuvens flutuantes sob o azul do céu de verão em Dilijan. Me deu um senso de continuidade: cruzar a escola toda manhã e ver a montanha mudando, as árvores se vestindo de verde, depois amarelo, laranja, vermelho, despindo-se em marrom, vestindo-se brancas de gelo, até que lentamente a neve derrete e elas se vestem de verde outra vez. Eu não acreditaria que é o mesmo lugar se não visse as transformações cotidianas, e admito que há beleza nessa drástica transformação de climas temperados: a cada par de meses uma oportunidade de se reinventar, mudando com as estações ou se opondo diametralmente a elas.
            Também dentro de casa descobri novos sentidos. Chocolate quente, biscoitos de gengibre, tantos sabores de chá que encheriam um catálogo. Chá, bebida que nunca me foi tão cara e jamais seria se não pelas pessoas que me alimentaram de abraços e beijos e reflexões regadas à agua fervente com flores e ervas secas flutuando. Tato: encher os dedos no pote segurando a quantidade exata de ervas para o melhor chá possível. Cheiro: camomila seca quanto tocada pela água quente. Visão: a dança de pequenos pedaços de planta e a súbita cor que se espalha na água, o redemoinho causado por vigoroso movimento da colher, a maneira vagarosa em que tudo se ajeita e aquieta. Vermelho escuro, amarelo claro, verde (claro, escuro, médio), marrom. Som: o clic da chaleira elétrica avisando que pronto, pode me esvaziar e fazer chá. Sentimento: a fumacinha quente da xícara penetrando as narinas e se aconchegando no coração, quando a gente senta sob as cobertas observando a neve lá fora. Eu não tenho palavras para isso. Não sei descrever a gama das mil memórias minúsculas que empilhei ao longo desses dois anos.
            Mente, corpo. Piscina, o som azul da água se espalhando ao meu redor, me enchendo as orelhas de cloro. Os olhos não, cobertos por óculos, o pânico da água que se infiltra depois da largada, da queda, sai dos meus olhos deixa só eu terminar essa length, só essa. Piscina, meditação em movimento. Eu nado e sou nada, nado e não penso.
            Mente, sem corpo. Filosofia, com sua estranha ortografia cheia de “p”s e “h”s em inglês. A enervante habilidade de certos colegas de classe de torcer argumentos até fazê-los ridículos, até fazê-los concordar com o que quer que estivessem defendendo. Filosofia, a classe que mais me tirava do sério. Eu costumava gostar, no começo, e ainda gosto dos livros – de fato, o gosto do pensar fica por dias, amargo, na minha língua, me forçando a avaliar os outros e eu mesma. Pensar dá ressaca. Mas é uma ressaca boa, questionadora, inflamada; às vezes calma, letárgica, reflexiva. De todo jeito boa – parece que a mente está maior quando se recupera. (E esse texto que começou como reflexão sobre os sentidos e terminou em muitas coisas. E olha que nem terminou ainda.)
A UWC adicionou tecidos e estampas ao meu vocabulário sensorial. Tapete persa, tapete armênio, vestidos Iranianos, chapéu de lã, figurinos de balé da Geórgia (com espadas cenográficas), cruzes de pedra e madeiras entalhadas. As flores e rendas russas, blusas de padrão ucraniano, os pesados mantos bordados do Cazaquistão e Turquia. A chita colorida e florida do Brasil, que enfeitou a minha cama por tantos meses, emanando vibrações de casa e me puxando pra fora do buraco negro de solidão e neve. As bandeiras de festa junina que eu espalhei pela residência, colocando um gostinho de Brasil em tudo o que via.
Adicionou cores também à minha lista de amigos. Eu que vivia em confortável ignorância dos problemas do mundo, apenas superficialmente consciente da existência do outro, neste lugar fui exposta à tantas diferenças que o outro tornou-se uma entidade para sempre existente, profundamente importante e impactante na minha vida. Eu que estudava numa escola majoritariamente branca, de classe média, descobri o gosto e a cara do privilégio por comparação. Eu não sou barrada num aeroporto. Ninguém que me revista é rude comigo. Eu quase não preciso de vistos. Ninguém me chama de extremista por defender minha religião. Ninguém diminui minha braveza por causa da minha cor de pele. Todas as roupas me servem. Nenhuma escada me barra. Eu não preciso batalhar diariamente para me certificar de que a comida que como tem ou não tem um tipo de carne, porque ninguém liga o suficiente pra colocar uma nota avisando. O meu cabelo não é considerado “inadequado”. O meu vocabulário não é policiado, e minhas gírias não são consideradas inferiores. A UWC me fez consciente da realidade de outras pessoas que tem vidas muito mais difíceis que a minha. E também dos que tem vidas bem mais fáceis – da dor da desigualdade (que nunca tinha me afetado, porque eu sempre estive na parte privilegiada). Em coisas pequenas, minúsculas quase: ir ao supermercado com a amiga que enche o carrinho porque ela tem dinheiro, porque o dinheiro dela vale mais, porque a passagem dela custa menos, enquanto eu calculo mentalmente o preço das minhas despesas, e me preocupo se terei dinheiro suficiente pra pagar a próxima compra. Estar na posição desprivilegiada pela primeira vez me deu empatia, e me fez mais humana.
 Me fez ciente também de coisas bonitas, indeléveis, marcadas na minha alma: meus valores. Não importa se ele precisa ou não do dinheiro, eu vou pagar de volta. E vou pagar logo, e honrar minha palavra. Se eu disse que vou, eu levanto da cama e vou. Não copio tarefa de ninguém, não entrego tarefa que não fiz. Não minto que estou doente, não mato aula se não for lidar com as consequências. Não roubo comida alheia, ou lápis, ou livro. Me responsabilizo pelo que fiz, e até pelo que não fiz (incontáveis louças sujas na pia, suco derramado nas mesas, cozinha suja, etc etc) porque entendo os mecanismos de viver em comunidade. O que um faz afeta todos, e eu sou uma pecinha em uma engrenagem feita de 200. Apesar de encontrar muita gente irresponsável, mentirosa, de moralidade flexível (“isso é errado em grande escala, mas eu fazendo não tem problema”) assim como via no Brasil, meus valores nunca mudaram. Os ensinamentos dos meus pais seguem gravados na alma, e eu presto honra a eles seguindo o que me ensinaram.
Aprendi também a lidar com a frustração. Aprendi que às vezes, a vida te joga um não na cara. E outro. E mais outro. Fui rejeitada. Por universidades, por interesses românticos. Doeu, mas passou. Doeu, mas me mostrou outras coisas melhores que estavam logo à frente. Da primeira vez que me disseram “tem algo guardado pra você” ou “no = nova oportunidade”, foi difícil acreditar – mas era verdade, como algumas semanas de espera provaram.

A UWC me ensinou muito, e me deu espaço pra aprender sozinha. Me deu mestres de muitas nações e amigos de muitos feitios. Me deu um espelho melhor de mim mesma, que ao me ver refletida nos olhos dos outros descobri quem sou e quem quero ser. Essa experiência me jogou no chão, e me disse “levanta”. E eu levantei. Estou de pé, estou correndo, estou voando. Em um mês e meio, estarei voando para casa. Em seis meses, para outro lugar. E depois navegarei para o mundo. Não sei se encontrarei um porto seguro onde baixar âncora – talvez meu destino seja ser nômade no mundo, parando apenas temporariamente até levantar acampamento, voltar para a estrada, cruzando mares, ares e caminhos. Talvez. Se tem uma coisa que aprendi, é que certeza só é útil em certas áreas – certeza demais atrapalha. Há que se deixar espaço pra improvisar, pra inventar, para mudar, para ser contrariada. Estou deixando um espaço pra isso no meu plano de vida. E um espaço na mala pras coisas novas que ainda vão vir. As cores e texturas que conheci do mundo vão empilhadas para sempre na memória e no coração.

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